Post de menininha

Depois de dois posts em que abordei, direta ou indiretamente, as práticas sexuais dissidentes (assuntos de menininho) vou falar sobre um assunto de menininha: categorizar o mundo. Qualquer livro, seja qual for o gênero, segmento ou autor, pode ser classificado em uma destas duas categorias: livro de menininha ou livro de menininho. Tenho um amigo que se sente incomodado quando eu julgo um livro (principalmente se ele gosta do livro) como “de menininho”. Pior ainda se ele gostar de um livro que eu considere “de menininha”.

Assim aconteceu com O perfume, do Patrick Süskind, um livro obviamente de menininho. O amante, da Marguerite Duras, um livro de menininha. Porém, ser de menininho ou de menininha não é uma questão definida pelo autor. Cem anos de solidão e O amor nos tempos do cólera do Gabriel Garcia Marquez são livros de menininha. Minhas putas tristes, por sua vez, um livro de menininho. As horas, do Michael Cunningham, livro de menininho, Sra. Dalloway, da Virginia, menininha. Poderia continuar eternamente (se não fossem tão limitadas as minhas referências), mas quero chegar a uma autora predominantemente menininha.

A Katherine Mansfield (ainda não é ela o meu destino) é uma escritora neozelandesa/inglesa e tem a sutileza britânica das moças da corte pra descrever as relações humanas, de menininhas e menininhos.  Dela, só li uma coletânea de contos, pela internet, o Bliss, que foi suficiente para que me apaixonasse (e falasse dela como se realmente conhecesse sua obra).

“Oh, you.” He thumped the Armenian cushion and flung on to the sommier. “You’re a perfect little Chinee.”

“Yes, I am,” she laughed. “I long for tea as strong men long for wine.”

I long for tea as strong men long for wine. Uma frase tão dramaticamente redonda que deixa a gente meio perdida na página (na tela).  Daquelas que fazem a gente parar e ficar parada. Nesse trecho, há a dicotomia entre os strong men e o I, eu, a menininha. Mas os strong men não escrevem livros, só menininhos, acuados, os escrevem. Os strong men plantam árvores, ou deveriam.

Saindo da digressão, o trecho do chá é do conto Psychology da Katherine, que chegou até a mim num momento complicado, numa fase complicada. Estava num surto pós-adolescente de paixão platônica. Meu alvo (eu seria o alvo dele, afinal), um amigo que tinha conhecido recentemente ao entrar para o curso de jornalismo. Ele era, incontestavelmente, um menininho gay, apesar da ausência de indícios ou confirmação à época.  No mesmo período, eu me correspondia com uma amiga virtual de São Paulo, com uma sintonia de dramas e angústias impressionante.

Tue, Aug 23, 2005 at 9:14 AM

Oi.

Você lê Katherine Mansfield?

Tue, Aug 23, 2005 at 1:22 PM

não, mas posso…

Wed, Aug 24, 2005 at 3:10 PM

Pode mesmo? Tá, agora o desaforo…

Eu queria que você lesse um conto dela que se chama “Psychology”. É curtíssimo e está no livro Bliss and other stories.

Eu queria te explicar o porquê, mas agora nada me vem à cabeça, nem uma mentirinha, droga!

Ah, e se puder, leia o original, que foi o que eu li. (Aliás eu ainda nem vi esse conto traduzido…)

E não tem pressa nenhuma, viu… Mas quando tiver lido ou estiver lendo me dá um toque e me fala o que achou!

Beijos!

O conto me traduziu naquele momento. Além de lê-lo, mandei-o discretamente para a minha paixão platônica, que, acredito, nunca tenha lido. Depois de Psychology, li, também por indicação da amiga, o Je ne parle pas français. E fui lendo um a um do Bliss, neste link daqui. O sentimento de compreensão mútua – eu entendo quem fez o texto, porque fez o texto, o que carrega os personagens daqui pra lá, e o texto me entende reciprocamente – é um dos requisitos para a catalogação dos textos de menininha. O resto, aqueles em que não compreendo a motivação, seja do autor, seja dos personagens, seja do próprio texto, estão no domínio do outro, do menininho.

Numa noite de sábado, eu entrei no carro do menininho da paixão platônica e ele me estendeu A paixão segundo GH, enquanto aumentava o volume de um hit indie da época: The rakes – Binary Love. A letra da música falava assim “de vez em quando você não finge que somos mais do que amigos?” e eu morria um tanto por dentro. Para uma menininha, como eu era na época, as sutilezas, as letras de músicas, os trechos de livro e os contos mandam mensagens subliminares. Para o menininho, era apenas uma música, era apenas um livro e eu era apenas uma amiga. Escrevi um longo e-mail me declarando, algum tempo depois, quando já estava a salvo, longe das complicações da obsessão.

A Clarice Lispector (agora chegamos nela), do Paixão segundo GH, é uma autora menininha. E se encontrou com Bliss em um momento similar ao que eu passava.  Não há sentimento de identificação maior do que encontrar as mesmas experiências estéticas em outras pessoas. Apaixonei-me pela Clarice.

Clarice ganha o lugar de redatora e repórter da Agência Nacional. Inicia-se, ai, sua carreira de jornalista. No novo emprego, convive com Antonio Callado, Francisco de Assis Barbosa, José Condé e, também, com Lúcio Cardoso, por quem nutre durante tempos uma paixão não correspondida: o escritor era homossexual. Com seu primeiro salário, entra numa livraria e compra “Bliss – Felicidade”, de Katherine Mansfield, com tradução de Erico Verissimo, pois sentiu afinidade com a escritora neozelandesa. (aqui)

Não li A paixão segundo GH enquanto estive apaixonada, parava na leitura do nome do menininho, escrito a mão, identificando o livro logo na primeira página. Fui passar para a segunda página, e desta para a terceira, alguns dois anos depois – ainda na versão emprestada que nunca devolvi.

2 comentários sobre “Post de menininha

  1. Alice disse:

    acho que peguei de você, mas eu também rotulo mundo, músicas, livros e bandas como de menininho e de menininha. e não tem quem me diga o contrário.

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