Paris, je t’odeio (parte 4)

O passeio pela Avenida Kleber contrastava com o da recém-deixada Champs Elysee. As calçadas eram mais estreitas e estavam menos cheias. De início, não havia nada de muito turístico até onde a vista alcançava. Os prédios, estes sim, continuavam do mesmo jeito, de novo e de novo. Por fora, pareciam ser grandes blocos densos, sem espaços para gente dentro. Aquelas muralhas inabitadas se opunham diretamente às janelas cheias de vida e varais de roupas íntimas de que tanto gostei no Porto e em Lisboa.

No final da avenida estava uma tal de Esplanade Du Trocadeiro com um grande jardim na frente, mas, assim que comecei a sentir o movimento de turistas aumentando, decidi virar uma das ruas perpendiculares e seguir pelo caminho mais alternativo possível. Afinal, só estava indo para a torre porque já estava pago, e não era obrigada a sofrer com mais um monumento-oh-que-grande-que-sou cheio de gente.

Por sua vez, os caminhos alternativos estavam tão desertos que cheguei a sentir aquele medo habitual de ser assaltada, mas logo lembrei que ali não devia ter dessas coisas e os riscos maiores, em todo caso, eram de um ataque xenófobo – o que também parecia improvável por aquelas bandas turísticas. Aproximando-me de uma esquina fantasma, escutei um ruído crescente de engrenagens e desavisadamente fui atravessada por um triciclo, guiado por uma menina de uns três anos, vestida com um casaco de vaquinha.  Ela seguiu por mais alguns metros enquanto a observava intrigada, será que estava sozinha? Mas logo a figura da mãe apareceu e gritou-lhe algo que a fez parar e olhar impaciente para a progenitora. Segui pela rua da qual a dupla havia saído.

Foto da torre fotogênica no caminho deserto.

Uma coisa inegável sobre a torre é sua fotogenia. Desde a primeira vez que a vi, comecei a tirar fotos e, não importava o ângulo, ela sempre sai bonita e engrandece o restante do contexto. É como se fosse aquelas modelos que vão tirar foto junto com pobreza pra catálogo polêmico de grife moderninha, sabe como?  Naquele momento, dava pra perceber que finalmente ela estava próxima mesmo. Andei mais uns dois quarteirões de vácuo habitacional até que cheguei à avenida que levava à ponte que caía direto na torre. Uma revoada de pombas coloriu o céu crepuscular.

Minha subida estava marcada para as sete e meia e ainda eram apenas seis do resto de tarde. Poderia aproveitar pra dar uns perdidos no Champ de Mars, que se esticava na direção contrária à da minha chegada. Mas, entre ver mais de perto os redundantes jardins queimados e sentar emburrada, preferia a segunda opção.  A parte debaixo da torre, tirando a vista por baixo da própria torre, não era muito bonita. Uma área no centro estava em obras e era limitada por gradis. A bilheteria também era toda cercada pelas divisórias metálicas, que, mais para o lado do Champ de Mars organizavam uma grande fila. Do lado em que eu estava, havia uma entrada alternativa para quem tivesse comprado com antecedência . Uma moça acabava de chegar nessa entrada  e eu perguntei quando eu deveria me apresentar. Ela falou que era só chegar na hora marcada mesmo. Maravilha. Sentei novamente no banquinho de concreto e tentei não sentir frio.

Durante toda a caminhada, tinha achado que superestimavam muito o frio. Para mim, aquela temperatura de menos um era quase igual aos 15, 16 graus de Belo Horizonte. Mas, parada no campo aberto, minhas mãos gelaram com o vento – o casaco continuava a segurar bem o aquecimento do resto do corpo. Tentei colocar as luvas de lã que tinha emprestado do Alan (trocadilho, lã, alã, hein hein. Ok). De nada adiantou. Praquele frio ali, só luvas de couro mesmo.  Me curvei  e comecei a friccionar uma mão na outra, ocasionalmente aquecendo-as com o ar que saía esfumaçado dos meus pulmões. Para completar a aura da mendicância, abri minha mochilinha surrada e saquei um dos saduíches de $0,75 do supermercado*.

Não fosse pelo estardalhaço dos gritinhos e palmas vindas da fila distante, eu não teria percebido que a torre tinha acendido os picas-piscas. Um pouco-casístico “ah” foi minha única reação.  Decidi dar um rolé no limitado espaço, agora iluminado pelos piscas bruxuleantes. Para minha surpresa, a lojinha de souvenir, que eu havia ignorado solenemente até então, tinha sistema de aquecimento. Fiquei entrando e saindo periodicamente, de modo a não levantar desconfianças, fingindo que estava interessada em alguma bola de cristal com a torre e floquinhos de neve.  Durante algum tempo, achei que era convincente e que ninguém percebia que na verdade eu estava com frio – como parecia ser o caso da maior parte dos visitantes ali. Mas a limitada variedade de produtos me fez desistir da atuação e assumir que aquilo era só um ponto de aquecimento. Então consolidei a rotina de entra, esquenta, sai, espera um pouco, senta, esfria, entra, esquenta, sai.

Quando o grupo das sete horas subiu, me posicionei mais ou menos perto da entrada para o grupo das sete e meia. Na minha frente, já estava um casal com um filho e uma filha que deviam ter cinco e oito anos.  Logo atrás de mim, outro casal, desta vez de lésbicas inglesas e volumosas, comentava sobre a idade das crianças do casal da frente, aparentemente iriam adotar em breve uma criança que era do tamanho do filho menor e felizes estavam. Fiquei feliz também. Até que um grupo de adolescentes paulistanos chegou e passou na frente de todo mundo – nossa fila não parecia muito oficial para eles.

Pouco tempo depois, a entrada foi liberada e a moça começou a conferir os ingressos dos passantes com a maquininha do código de barras. Para alguns, ela falava algo rapidamente e entregava uma folha. Na minha vez entendi o que era: “O terceiro andar está fechado, quem comprou para subir até lá pode preencher este formulário para ter o dinheiro a mais devolvido”. Obviamente eu tinha comprado para ir ao terceiro andar, mas, de preguiça, não iria preencher o formulário. Subiria só até o segundo e doaria os cinco euros a mais para a economia francesa. Suspiros.

No elevador panorâmico, cabiam umas vinte pessoas. Entravam primeiro os que tinham comprado com antecedência e, na sobra de espaço, começavam a liberar para o pessoal da fila normal. O grupo de adolescentes paulistanos era estabanado, mas educado. Fizeram uma algazarra suportável e se esforçaram para não incomodar. As crianças do casal tinham  reações bonitinhas de surpresa e eu fiquei viajando, pensando na cena inicial do filme sonhadores, enquanto fazia o videozinho acima.

Lembro com exatidão as palavras que vieram à minha mente dois passos depois de abertas as portas do elevador no segundo andar: “Mas cê tá zoando comigo!” (no sentido positivo da expressão). É difícil descrever o impacto que a vista lá de cima teve no meu corpo e na minha mente. Foi como se todo o dia de irritações sumisse e apenas aquela imagem tivesse feito valer a viagem. Lágrimas começaram a saltar involuntariamente dos meus olhos (e só de lembrar da sensação, elas vêm de novo). Um bonito impressionante, infinito. A cada lado, um bonito diferente. Paris iluminada, o riozinho, as grandes obras que ficam tão pequenas vistas de cima e os turistas que se tornam invisíveis.

A lotação do andar estava muito razoável, dava para andar por todos os cantos e ver tudo de todos os ângulos. Em certo momento, pude escutar a filha mais velha das crianças do casal na fila implicar com o irmão, falando que ele iria cair de tal lugar, ao que uma das funcionárias interrompeu e explicou que lá era tudo muito seguro, então elas podiam aproveitar bem e fazer artes, que não tinha jeito de cair.

Apesar da beleza natural da coisa, por todo canto havia propagandas de produtos dos mais variados possíveis: numa vitrine, ao lado de um bloco de vidro com a escultura de um casal dentro, estava o anúncio de uma impressora 3D para namorados, com a foto do casal que estava esculpido, creep. De tão extasiada com a vista, nem lembrei de tirar foto da bizarrice e até comprei um dedal superfaturado, que parecia autêntico, na lojinha de souvenires (que era a mesma que tinha lá embaixo, mas em cima, fiquei mais tranqüila por ter ‘pagado’ pelo aquecimento, no final das contas).

Passei mais de uma hora por lá. Depois do descarrego emocional, talvez eu não precisasse ir embora no dia seguinte, talvez tudo estivesse bom de novo.

*Apesar de ser um relato detalhado, pulei a parte antes do almoço em que passei num supermercado e comprei dois sanduíches, água e um biscoito com amêndoas que era a melhor coisa do mundo e que fui comendo no jardin des tuileries.

2 comentários sobre “Paris, je t’odeio (parte 4)

  1. Lorena Galery disse:

    Menina do céu. Tava ficando preocupada já com a sua viagem perdida. Mas se você chorou com a luz da cidade luz, pra mim já é suficiente. Dica: sobrevoar paris de avião a noite. É como se o corredor do segundo andar da torre percorresse a cidade toda. é muita luz e nenhuma gente.

    Eu também chorei no pont-neuf e no L’orangerie, caso você esteja procurando por mais lágrimas parisienses….

    bêjo,
    Lorena

  2. Maria Tereza disse:

    Gostei bastante da vista aérea de dia também! Não sei se iria gostar da ponte (tomei antipatia mesmo por essas obras haha), de museu, deu pra ir só no louvre mesmo, foi uma viagem bem rápida – e revoltei no segundo dia. Quando voltar completo os passeios! (não se preocupe, em capítulos posteriores da história eu vou ter motivos pra voltar!)

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