Como me tornei gorda

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Minha irmã magra e eu gorda

[Dica de livro: Pare de se odiar: Porque amar o próprio corpo é um ato revolucionário]

Eu sou um ano e três meses mais nova do que minha irmã, ela é magra, eu sou gorda.  Tanto meu pai quanto minha mãe foram magros durante toda a juventude e ganharam peso mais velhos, hoje são gordos. Eu sempre fui gorda.

Parte 1 – O drama

Ser “gorda” vai muito além de ser alguém que pesa mais do que o recomendado pela organização mundial de saúde. Ser gorda é ser alguém doente, é ser alguém que tem menos direitos que magros – não pode usar biquíni na praia, não pode usar roupa curta, não pode deixar barriga de fora, não pode namorar gente “bonita” e outros tantos de não pode. É também ser alguém repulsivo, que não é desejável – ninguém quer fazer sexo com uma gorda e se quer é porque é pervertido e, portanto, as gordas devem sentir vergonha de serem desejadas.

Não existe um espaço de tempo desde as minhas primeiras memórias aos 2 anos em que eu não lembre de algum comentário sobre o meu excesso de peso. Mas, na infância, eu não tinha consciência da função que o meu corpo feminino devia exercer na sociedade, essa coisa de ter que ser meio que um objeto padronizado para ser desejado.

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Eu gorda, de preto (que emagrece) aos 13

Na adolescência, juntamente com a consciência de que meu corpo tinha que atender a um padrão, vieram as primeiras estrias, nos braços, e passei a usar só blusas com manga, depois na barriga, parei de usar biquínis, e na coxa, tentei usar shortinhos e depois desisti de vez de nadar em qualquer ocasião.

A percepção do quanto importava que eu fosse gorda foi crescendo juntamente com a minha barriga. Pouco a pouco minhas fotos de corpo inteiro foram sumindo dos registros – e segui postando aquelas fotografias em um ângulo em que eu ficasse bonita (lê-se: parecesse magra) e me satisfazendo com os elogios a uma imagem que não me representava.

Aos 15, gorda de macacão do garfield.

Aos 15, gorda de macacão do Garfield (que engorda).

Quando eu era pequena, o irmão de uma amiguinha se apaixonou por mim e me escreveu uma carta de amor. Ao relê-la já adulta, não pude deixar de reparar que ele me chamava de “fofa” e pensei, com um pouco de amargura, que o que ele provavelmente queria era dizer era que eu era gorda, e ressignifiquei a declaração de amor.

Parte 2 – O primeiro sacode

Olhando fotos antigas, comecei a reparar em algo que tinha passado despercebido: eu nem sempre fui tão gorda quanto eu sou hoje. Em alguns períodos, olho para as fotos e acho que nem gorda eu era. Ao mesmo tempo, a auto percepção da minha gordura sempre foi a mesma. Ou seja, não importava o meu IMC, para mim, eu era sempre gorda do mesmo jeito. O que eu sentia sobre o meu corpo não tinha a ver com a minha imagem real, mas com um conceito abstrato.

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Eu gorda, de barriga de fora, minha irmã, magra, de rosa e viseira

Ainda, percebi que quase ninguém que não fosse da minha família tinha me chamado de gorda. Não escutei o famoso “tem um rosto tão bonito, se perdesse uns quilinhos…” de alguém fora de casa. Em visitas a tias, não importava se fosse num intervalo de uma semana, um mês ou um ano, ao me ver, o primeiro comentário era se eu tinha emagrecido. Quando era recebida sem comentários sobre emagrecimento, era um sinal de que eu tinha engordado e o assunto surgiria algum tempo mais tarde – tensão.

Além da minha família, as únicas duas outras ocasiões em que fui chamada de gorda foram, ironicamente, justamente as situações em que a ideia era perder peso: pela professora de natação que gritava insultos de fora da piscina para me “motivar” e, mais tarde, pelo professor de capoeira, que me apelidou de popotinha – nome de uma poupança bancária para crianças, cuja música tema da propaganda tinha o verso “popotinha, cada dia mais gordinha”. Não é preciso dizer que não continuei as duas atividades.

“Mas não nos preocupamos com sua aparência, é na sua saúde que estamos pensando”. Depois de muito tempo adiando ouvir de um médico o que toda minha vida escutei da família, fui fazer um checkup para descobrir que… Sou perfeitamente saudável. Colesterol, açúcar, ácido úrico, ritmo cardíaco, oxigenação, potência do pulmão… Na conversa com o médico, ele não demonstrou nenhum pingo de surpresa com os resultados, ou com o meu ciclo menstrual regular, ou com meu intestino que funciona “como um reloginho”. Apenas me deu os parabéns pela saúde de ferro.

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Gorda, saudável, de corpo inteiro (favorecida pelo ângulo, mas não pelas listras horizontais).

Sim, existem estudos que vinculam a obesidade a mortalidade precoce. Mas isso não quer dizer que todo gordo vá morrer mais cedo ou que todo gordo vá ter problemas do coração, são vários outros fatores no jogo. Igualmente, existem estudos que falam que quem come carne morre mais cedo, e não vejo nenhum carnívoro sofrendo tanta pressão pra virar vegetariano por aí (cof cof, aqui na Índia sim).

Com a esperança de tranquilizar os parentes, que se preocupam com “minha saúde”, ao contar sobre os resultados, escutei: “Por agora, mas no futuro… se você continuar se descuidando…” Havia uma expectativa (até minha) de que eu estivesse mal das pernas, porque daí ia ser um incentivo pra emagrecer (=ficar bonita = ser melhor e mais amada).

Parte 3 (final) – A reeducação alimentar mental

Não adianta culpar a família por algo que não está completamente no controle deles, afinal, existe uma pressão maior: as referências midiáticas. É bem difícil aceitar que ser gordo é normal e bonito (também), se todas as referências culturais dizem o contrário. Se na televisão, no cinema, nas revistas que definem o que é bonito, o normal é aquilo que não é normal.

Vivemos em uma ditadura de uma minoria loira de cabelos lisos e magra e, mesmo sendo muito mais numerosos, nós, os imperfeitos, somos dependentes desse “ideal” totalitário. E reproduzimos o pensamento em tantas formas e em tantas camadas, que, quando acordamos para a realidade – “a definição de beleza é pessoal e intransferível e pode/deve ser independente de todos esses padrões impostos” -, é difícil e trabalhoso reprogramar os padrões mentais que nos empurram pro mesmo lugar sempre: “se eu fosse mais magra, eu seria melhor”.

Li este post aqui do Lugar de Mulher que mudou minha vida (aliás, todo o portal está de parabéns!). “Body positive” era um termo que nunca tinha escutado e agora virou meu mantra. Ele consiste basicamente em exaltar a beleza execrada pelo “padrão”. Passei horas no tumblr Fuck Yeah People with Strech Marks (NSFW).  E, passo a passo, estou deixando de ser aquela pessoa que, mesmo com uma capinha de auto aceitação, ainda olhava para os corpos não padronizados e pensava “se ATÉ essa pessoa tem autoestima, eu também consigo” ou “ainda nem estou tão gorda assim”, para entrar numa nova vibração em que olho para os mesmos corpos e penso “sou tão bonita quanto todos vocês e quero me sentir bem por ser assim”.

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Eu gorda e dançando

21 comentários sobre “Como me tornei gorda

  1. instintoarquiteto disse:

    Nossa parece que li a minha história, eu passei praticamente exatamente por isso, quando pequena nem era gorda mas a família sempre falava: “- nossa você não vai emagrecer?” “tem que cuidar da sua saúde” “depois não vá chorar porque engordou” e outros comentários do tipo inclusive esse que” nossa você emagreceu, continuar assim vai ficar linda” tipo Oi?. Eu sempre me incomodei com isso, mas ficava ainda mais incomodada porque nunca tinha um tipo de comentário, nossa você é tão inteligente, não sempre era sobre algo superficial. Eu sei, não sou hipócrita e dizer que não gosto de me sentir bonita e quando eu acabo tendo que comprar uma calça menor, mas não sei até onde isso veio de mim ou da cobrança dos outros. Bem mas enfim, fico feliz de hoje conseguir ter consciência disso tudo e ver que tem outras pessoas que passaram por isso é realmente revigorante! 🙂

    • Maria Tereza disse:

      Obrigada pelo comentário! Está sendo ótimo ouvir o “eu também vivi isso”. A questão não é mesmo não querer ser bonita, ou mesmo não querer emagrecer, é simplesmente passar a se enxergar de uma forma mais sincera e, se não é pra emagrecer, saber se amar e saber que existe espaço no mundo pra todo o tipo de beleza – sem culpa!

  2. twobrownfeet disse:

    I finally have been able to read your post! I’m not sure if the translator works accurately, but I think I understood the essence of your thought. For starters, I loved your article, the photos and your viewpoint! Obsession with body weight and size is something we battle all through our lives. As women more so. It’s ironic, people give so much importance to being slim and attractive, considering all the ‘crap’ which ails the world. Instead, we should be encouraged to be thankful for being healthy, who we are rather than how we look or how people perceive us.

    • Maria Tereza disse:

      Hi Cherryl, you got the point! Ideal weight and image are a socially built torture… And most of the time, they don’t have any relation with our actual image, or overall health, or potentials. It is like as we looked at ourselves with the eyes/values of others. We should think always the best of ourselves!

    • Maria Tereza disse:

      Ei Cristina! Ótimo o seu post, também tenho gostado de receber uns “eu também sinto isso” por aqui. Tendo a discordar sobre o preconceito por gordos X outros tipos de preconceitos. Principalmente porque o preconceito do gordo está muito ligado à questão da mulher na sociedade (e o preconceito contra gays também está relacionado com o machismo). Homens gordos sofrem menos que mulheres gordas (ou precisam estar mais gordos para sofrerem o mesmo tanto), existe uma maior aceitação para formas diferentes de homens do que de mulheres, porque, no final das contas, os homens não são objetos, mulheres sim (extremo do conceito). Não posso imaginar a intensidade do preconceito que um negro sofre e, muito menos, o que uma mulher negra e gorda sofre, por isso acho perigoso usar uma métrica nesses casos. Abraços!

  3. Adna Rafaella Barbosa disse:

    eu sou gorda, smp fui, desde criancinha. na escola o q mais oivia era baleia, e derivacoes do tipo. na adolescencia, eu tinha a msm mentalidade de q eu precisava emagrecer pra ficar bonita e ser desejada. cresci, e comecei namorar, e me aceitar, e gostar do meu corpo. mas terminei, e parece q a auto estima se foi tbm. é dificil se aceitar, qndo durante td tempo vc tm se parecer com a algo q n é voce. eu sei q sou perfeitamente saudavel, sou vegetariana, faco atividade fisica td dia. mas eu sinto q n é suficiente, e q so vai ta bom qndo eu for magra. enfim, to trabalhando na parte de aceitacao d nv, pq como smp pensei, minha vida é mt curta pra perder tmpo tentando ser um ser por pressao de um padrao de beleza q enfeia todos!

  4. liviatameirao disse:

    Ei Maria Teresa, você descreveu parte da minha vida tbm. Na verdade você vivenciou  parte de uma das minhas piores fases, o colégio. Diferente de você, sempre fui insultada.
    Na adolescência sempre fui gorda por mais que praticasse esporte. Anos depois descobri o porquê eu não conseguia emagrecer, tenho resistência à insulina que dificulta e muito o emagrecimento.
    Ao longos dos anos encontrei blogs como o seu que me ajudaram a desencanar e a viver a vida como deve ser vivida.
    Apesar de já estar num nível alto de fodas para a ditadura da magreza, tive que me render ao método mais invasivo para ficar magra, a cirugia baríatrica. Mas isso por causa da minha saúde, se fosse só para ficar magra não a teria feito de jeito nenhum.
    Parabéns pelo blog!
    Bjs,
    Livia.

  5. Luiza Armanelli (@luarmanelli) disse:

    Assim como várias meninas aqui, também me vi no seu post. Uma vida inteira de amargura. 25 anos de sofrimento, de “não quero sair pq essa roupa não me cai bem”, de aflição ao ter que encarar piscina ou praia. Quantas vezes na escola eu deixava de participar de atividades com vergonha? Nem sei mais. E tudo isso pq achava q n estava de acordo. Emagreci muito uns anos atras, ouvi que finalmente estava linda, que minha hora havia chegado. Ganhei algum peso de novo e ainda ouço desaforos por ter sido fraca e engordado novamente. Triste, apenas triste. Hoje, estando 17kg acima do meu “peso ideal”, ainda ouço pessoas me falando que deveria fazer cirurgia bariatrica. E perder 40kg. E acabar morrendo no meio do caminho também, doente. Mental e fisicamente. Vamos seguir firmes e fortes meninas.

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