Ano Novo no Ganges

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6. Quando achei que era tempo bastante de meditação silenciosa às margens do Ganges, tirei os tênis e as meias. Assim que me levantei, quatro meninas pequenas me rodearam. Elas vendiam flores para serem jogadas no rio. “Madam”, “Madam”, “Flower, madam”. Os arranjos de calêndulas já estavam murchos e tristes, mas elas não aceitariam um não, então voltei ao degrau em que meditava, sentei-me, vasculhei a bolsa e estendi uma nota de 50 rupias para a que parecia mais decidida, esclarecendo: “não quero as flores, vocês dividam”. Ela tomou a nota e depois de uma rápida discussão com as amigas, voltou: “more 50 madam, 25 each”. Não era em tom ameaçador, apenas uma barganha de crianças pedindo o “ano bom*”. Hesitei brevemente, e todas entoaram um uníssono “pleeease diiidiii**”, caprichando na carinha desolada. Voltei à bolsa, pedi as 50 rúpias de volta – devolvidas sem resistência – e entreguei uma nota de 100. Apontei para cada uma, twenty five, twenty five, twenty five, twenty five, ok? “Ok!”. As segui com o olhar para ver se iam conseguir dividir o dinheiro sem brigas. Deram seu jeito.

5. Estava praticamente sozinha. Não era possível andar quase nada pra dentro do rio, já que a profundidade aumentava repentinamente. Segurava meus tênis, com algum temor de ficar sem eles se os deixasse às margens. 2015 foi lavado nas águas geladas do Ganges apenas até as canelas.

4. Ao voltar ao degrau de onde tinha saído para entrar no rio, uma menina, que não saberia dizer se era uma das quatro que me cercaram anteriormente, sentou-se ao meu lado e insistiu para que eu aceitasse a oferenda de flores. Ela tirou do bolso uma caixa de fósforos mostrando que poderia acender uma vela no centro da tigelinha metálica que abrigava as calêndulas. “Beautiful, madam, beautiful”. Neguei algumas vezes, mas ela estava decidida a acender a velinha. Finalmente, consegui impedi-la falando que não queria sujar o rio, que o rio devia ficar limpo. Ela pareceu se comover com o argumento (fosse ele verdade ou não). Pôs a tigelinha de lado e se uniu a mim na silenciosa contemplação do fluxo das águas.

3. “What’s your name, madam?”. Maria. “Maria”, ela repetiu. Algum tempo depois, informou: “Mere nam he Rani”, Ra-di?, “Ra-ni”, Rani, nice! – eu estava um pouco encabulada por não ter devolvido a pergunta do nome anteriormente, mas me redimi: how old are you, Rani?. Ela colocou alguns dedos sobre a boca, e olhou para o céu, reflexiva, acredito que mais para lembrar dos números em inglês do que para descobrir a própria idade. “Eleven!”. Eleven!. Ela parecia bem mais nova. “Madam, country, madam”. Brazil. “Brazil…” – seguida de expressão de dúvida intensa, Near America, amenizei. “America!” Seu rosto se iluminou com a referência familiar. Near, near. “How old are you, 25?”, No… 30!, “Thirty!”. Dessa vez era uma exclamação sincera, que tomei como elogio. Na falta de mais palavras em comum, voltamos ao silêncio.

2. Meu pés já pareciam suficientemente secos, tentei remover a areia restante a tapas, sem sucesso. Rani lamentou que estivessem tão sujos da lama escura das margens do rio: “Sand”, disse, preocupada com o futuro dos meus sapatos. Oh! Don’t worry! I’ll wash it later!. Consolei-a. Sua preocupação era tão genuína que me senti mal pelos meus pés. Rani sorriu, desculpando-se ela pela sujeira do rio. Bye Rani.

1. No caminho de volta, engoli com dificuldade a expressão de Rani, reagindo aos meus pés sujos de lama. Na ida para o rio, tinha lamentado uma horda de crianças uniformizadas, que pena, com aula até no último dia do ano. E a Rani de onze anos de idade, enquanto isso, importunava turistas com flores murchas.

*No dia primeiro de todos os anos, quando crianças, eu e meus primos pedíamos “Ano bom” (dinheiro) para os parentes.

** Didi significa “irmã” em hindi.

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